Joaquim (2017)
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Joaquim

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Joaquim se abre de maneira chocante, com uma cabeça decapitada sob a chuva torrencial. O narrador-defunto se apresenta como Joaquim José da Silva Xavier, vulgo Tiradentes, que foi decapitado por traição à Coroa portuguesa e passou a ser estudado nas escolas como herói (sim, o falecido está consciente da futura apropriação cultural de sua imagem). O início converge tempos históricos, rompe com a cronologia narrativa e com a contextualização dos fatos. A radicalidade é ainda maior por se tratar de uma biografia, gênero pouco afeito às desconstruções estruturais.

Joaquim - FotoAos poucos, a narrativa se acalma, embora mantenha uma linguagem cinematográfica viva, com câmera na mão acompanhando os personagens, cores fortes no retrato da natureza e diálogos ágeis, contrariando o imaginário do comportamento empostado atribuído às relações sociais no século XVIII. Joaquim é composto por Júlio Machado como um tipo bruto, movido mais pela ação do que pelas convicções – no início, ele é todo exterioridade e nenhuma psicologia. A estética contribui à impressão de imediatismo, de impulsividade por parte do homem que arranca dentes alheios com as mãos.

Após tamanhas surpresas narrativas e estéticas, Joaquim passa a se dedicar à descrição de procedimentos. É um trecho desenvolvido com calma, na intenção de esclarecer algo que supõe não fazer parte do conhecimento do espectador. Ensina-se como ocorre a busca por ouro, como se organizam as expedições, como os militares ganham novas patentes, como os viajantes atravessam um rio cheio de piranhas. Um militar português (Nuno Lopes), profundamente desajeitado e ignorante, serve de referencial para que Tiradentes tenha que explicar ao colega – e ao público, por extensão – como a história se faz.

Neste trecho, o filme ousa se repetir, se desacelerar. Ao invés de situar a ação nos momentos grandiosos, o diretor Marcelo Gomes se instala nos bastidores, nos períodos inevitáveis de espera, dúvida, cansaço. Enquanto o cinema de estúdios conta a história pelo olhar dos vencedores, este projeto se dedica à trajetória irônica dos perdedores, das pessoas banais que não conquistaram os seus objetivos, além daqueles que jamais vão figurar nos livros didáticos. O filme retira do passado a sua glória, sua mecânica de causa e consequência, para observar a criação do país como um processo contínuo e antiespetacular.

Joaquim - FotoO olhar processual permite ao roteiro efetuar seus questionamentos mais importantes. Na expedição de busca pelo ouro reúnem-se brasileiros, portugueses, negros e índios, somando forças à tarefa única. Isso não impede que cada um tenha sua cultura e interesses próprios: são belíssimas as cenas em que o escravo (Welket Bungué) faz uma jornada solitária, de madrugada, para enterrar o cadáver de outro escravo encontrado pelo caminho, e quando este mesmo personagem canta junto de um índio (Karay Rya Pua), cada um com sua língua, todos igualmente brasileiros, compreendendo-se sem se compreender. Joaquim observa a dupla e compreende enfim que as transformações acontecem pela base da pirâmide social, e não pelo topo.

Assim ocorre o despertar político do protagonista, fundamental aos acontecimentos que lhe trariam o rótulo popular de herói. Gomes interrompe o filme antes de Tiradentes se tornar um mito, afinal, seria redundante a representação do imaginário popular. Que o espectador imagine as suas batalhas, a cena de decapitação, as conclusões da Inconfidência Mineira. Ao invés de criar o Tiradentes-herói, o roteiro investiga os motivos para a conversão de Joaquim em militante. Mesmo assim, não se dedica tanto à transformação interna do personagem num rebelde: novamente, prefere as manifestações externas à psicologia. Por isso, a conversão de Tiradentes pode soar abrupta, assim como os encontros com o Poeta são os únicos realmente artificiais, com diálogos explicativos e entonação solene demais.

Felizmente, Joaquim se conclui de modo tão selvagem quanto começou. Pode ser uma solução frustrante no que diz respeito à fluidez narrativa, mas trata-se de uma escolha potente como simbologia e discurso político, capaz de convocar o espectador à revolta social diante de qualquer opressão, inclusive em tempos contemporâneos. Sacrificando o ritmo e a coesão pela complexidade do discurso, Joaquim ousa ser excessivo, fervoroso, um projeto contrário aos moldes tradicionais e surpreendente em sua revisão da formação do país.
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